27.9.06

Ingredientes

Ele suado, arrumando o lençol da cama. Ela sai do banheiro, molhada, enrolada em uma toalha.
Ele: ...
Ela: Vê pra mim.
Ele (se agacha, investigando por baixo da toalha dela): Deixe-me ver.
Ela: ...
Ele: ...
Ela: E agora? Saiu?
Ele (levanta): Saiu sim.
Ela: Ai, graças a Deus. Eu não sabia que leite condensado era tão difícil de sair, até com água e sabão.

11.9.06

Aurélio

Ela sentada do lado da cama. Ele, atrás dela, ajoelhado em cima da cama, fazendo chapinha nela.

Ele: Sabe o que eu acho engraçado?
Ela: O quê?
Ele: Esse nome. Chapinha. Um tanto quanto desenvolto.
Ela (ri): O que é que tem?
Ele: Parece meio esdrúxulo e ao mesmo tempo tão singelo.
Ela (ri): ...
Ele: Que foi?
Ela: Engoliu um dicionário... é, ô papagaio?
Ele: Tô treinando meu vocabulário.
Ela: É mesmo, é?
Ele: É. O que achou?
Ela: Se nossas posições fossem inversas eu estaria quase vomitando em cima de você.
Ele: Ah, o que dizer de uma pessoa desviada do caminho cultural.
Ela: Agora chega, César. Já deixou de ser engraçado.
Ele: Fica quieta, Luiza. Aí, ó... vou acabar queimando sua orelha.
Ela: Então páaara.
Ele (apertando o aparelho em uma das mechas): Já parei.
Ela: ...
Ele: Putz...
Ela: O quê?
Ele: Você não lavou o cabelo direito.
Ela: Claro que lavei.
Ele: Não lavou. Tá todo cheio de condicionador aqui embaixo.
Ela (ironiza): Não estaria "pleno" de condicionador??
Ele (rápido): Não começa.
Ela: Mas eu lavei.
Ele: Tudo menos a nuca.
Ela: Ai, cacete, César. Você não vai me fazer voltar praquele chuveiro, vai?
Ele: Vai estragar todo o resto.
Ela: Então?
Ele: ...
Ela: ...
Ele (lamenta): Por que você não me deixou lavar seu cabelo?
Ela (pausa, depois sorri): Porque eu não tenho 4 anos de idade.
Ele: Ué... tú pagas uma fortuna no salão de beleza pras bichas ficar lavando seu cabelo. Por que eu não posso?
Ela: Peraí. Com as bicha é diferente. Eu não sou casada com nenhuma delas. E elas são bichas.
Ele: Então essa é a única questão que tu me ofereces: a sexualidade de quem mexe no seu cabelo?
Ela (já nervosa): Exatamente... homem que é homem não quer saber de ficar alisando cabelo de perua. Principalmente o homem que é meu.
Ele: Mas como tú és preconceituosa, hein, Luiza.
Ela (nervosa): Ai, César. Termina essa bosta desse cabelo logo e não me chateia com discussão ridícula. Que saco, eu tô atrasada.
Ele (continua): Ah, tu sabias muito bem que...
Ela (interrompe no grito): E pará de falar na segunda pessoa que isso tá me irritando.
Ele: ...
Ela: Parece português de botequim de esquina, tá louco...
Ele (baixinho): Tô treinando meu vocabulário.
Ela(bufa, irritada):
Ele: Aí, ó...
Ela (impaciente): O que foi agora?
Ele: Você mexeu... pegou muito perto da raiz. Vai enfraquecer.
Ela: Como assim? Eu vou ficar careca?
Ele: Não, se você lavar o cabelo agora.
Ela (olha pra ele): Ah, não. Eu tenho que tá na convenção daqui vinte minutos.
Ele (olha pra baixo): Então esquece raiz bem nutrida.
Ela (se levanta): Puta, mas que caralho, César. Eu te peço um favorzinho e você merdeia a coisa toda, não é?
Ele: Merdeia?
Ela (indo pro chuveiro): É. Tô treinando o MEU vocabulário.

6.9.06

Sorte do dia

Debaixo do edredom: dois sentados na cama. Em cima do edredom: caixinhas de comida chinesa.

Ele (quebra o biscoitinho) : "As pessoas que acreditam que um problema possa ser resolvido tendem a trabalhar para resolvê-lo". Viu só, Luiza?
Ela: O que você quer dizer com esse "viu só, Luiza"?
Ele: Nada.
Ela (ironiza): Nada, não. Quis dizer Tudo, né.
Ele: Amor, foi só um comentário.
Ela: César, você tem mania de fazer comentários, já percebeu?
Ele: E você tem mania de julgar todos os meus comentários, já percebeu?
Ela: ...
Ele: O que diz o seu?
Ela: Peraí... "Nada existe de mais frágil do que uma criatura iludida a seu próprio respeito".
Ele: Ah, tudo a ver com você.
Ela: Quê isso? Que "tudo a ver comigo"?
Ele: Criatura... frágil... iludida... sem respeito... ah, conheço essa.
Ela: Ah, César. Você não entendeu nada do que tá escrito aqui, né?
Ele: Amorzinho, eu nunca entendo.
Ela: Tá certo.
Ele: O meu único interesse em comida oriental é o franguinho com amendoim.
Ela: Xadrez.
Ele: Isso aí.
Ela: ...
Ele: ...
Ela: Vem cá, mas você acha que eu sou iludida? Digo... a meu próprio respeito.
Ele: Acho.
Ela: Sério?
Ele (rápido): Mas não é culpa sua.
Ela: Não?
Ele: Não.
Ela: Então de quem é? Sua?
Ele: Não... minha, não. Quê isso? Eu lá sou louco de mexer com o sentimento de uma criatura frágil como tu.
Ela: Então...
Ele: A culpa é da mídia televisiva.
Ela: De onde você tirou isso, César?
Ele: Ué, foi aquele cara que trabalha no departamento de marketing da empresa que você trabalha que disse naquela palestra sobre...
Ela (interrompe): Ai, César, você acredita em tudo o que te falam, homem?
Ele: Ué, aquilo era mentira?
Ela (pensa): Bem... Não, totalmente.
Ele (também pensativo): Hum...
Ela: ...
Ele: Vem cá, o que exatamente faz a empresa que você trabalha?
Ela: Não sei... sabe que acho que tem alguma coisa a ver com o ramo de tecnologia do governo?
Ele (surpreso): É mesmo, é?
Ela (incerta): Tenho a leve impressão.
Ele: Coisa grande, hein?
Ela: Nem fala.