14.2.07

Bidê motivos

Eles chegam de um jantar familiar.

Ela: E aí?
Ele: Que foi?
Ela: O que você achou?
Ele (tirando os sapatos): Do quê, meu amor?
Ela: Do apartamento onde mora a minha irmã.
Ele: Ah, sim. Muito chique, Luiza... Me senti meio preso, sabe? Com medo de quebrar alguma coisa.
Ela: Sabe que eu também... mas adorei esse upgrade da minha irmã. De riponga a socialite.
Ele: E esse mérito é todo dela, hein.
Ela: É sim.
Ele: É o lado positivo de se casar com um alemão que nunca viu uma mulher de verdade na vida.
Ela: Você acha?
Ele: Acho. Sorte dela.
Ela: Sorte por ser mulher, ou por ser mulher de verdade?
Ele (puto por antecipação): Luizaaa... esse é o tipo de pergunta que vai me conduzir a um instante em que eu vou me ferrar, não é?
Ela: Não, não. Só parece. Pode ficar tranquilo.
Ele: Porque, apesar de maluca, sua irmã consegue ser uma mulher muito atraente.
Ela: Sei... você quer dizer que eu então, não sou atraente?
Ele: Porra, você disse que não ia contornar as coisas.
Ela (rindo): Eu tô brincando, bobinho.
Ele: É... tô sabendo.
Ela: Mas que eu fiquei embasbacada com aquele apê, ah, meu filho, eu fiquei, viu...
Ele: Embasbacada?
Ela: É.
Ele: Nossa... a última vez que você ficou embasbacada com alguma coisa a gente foi expulso do museu, lembra?
Ela: Ah, o segurança que me encheu o saco falando que eu tava colocando a mão na escultura.
Ele: Tava mesmo. Aquela estátua que parecia um pinto... você tava ali, ó... (faz o gesto) alisando a horas...
Ela: Mas, César. Era imensa.
Ele: Você tem perseguição por coisa grande e fálica, já percebeu? Tudo que lembra uma rola imensa.
Ela: Por falar em rola imensa... no banheiro da minha irmã...
Ele: Aquele banheiro enorrrrrme... que tem até feirinha hippie dentro?
Ela: É esse mesmo... tem um pé de jabuticaba... nossa, César... eu olhei praquele pé de jabuticaba... a forma e estrutura daquele pé de jabuticaba... na hora, eu lembrei daquele filme com o Alexandre Frota.
Ele: Aquele do presidiário?
Ela: É.
Ele (embasbacado): Caramba.
Ela: Um banheiro lindo. Espaçoso, chique...
Ele: Ah, eu já sei qual é a sua. Você gostou do bidê, não é? Você adora um bidê, Luiza.
Ela: Ai, adorei. Eu gosto mesmo. Mas não é pra usar e nem fazer safadeza, não.... porque, nossa... aquele esquicho de água na bacurinha me dá uma aflição...
Ele: É mesmo, é? Então pra quê... o bidê?
Ela: Pra nada. Pra ficar lá. Acho muito chique ter bidê no banheiro.
Ele: Chique... o bidê?
Ela: É. Desde pequena eu tenho esse fascínio por essas coisas, sabe?
Ele: Que coisas?
Ela: Ah, essas coisas que só tio e tia velha tem em casa. Bidê, teto solar, aqueles jarros de barro chinês enormes no canto da sala.
Ele: Ah lá... jarro enorme... coisa grande e fálica!
Ela: Ai, um espetáculo aqueles jarros de barro chinês no canto da sala de estar.
Ele: Sabe que eu nunca vi isso. Jarros de barro chinês no canto da sala de estar. Nunca vi.
Ela: Ai, César, é lindo... quer dizer, eu achava lindo... hoje eu acho completamente brega, mas antes...
Ele: Contudo o bidê?
Ela: ... ainda sou fascinada.
Ele (ri): ...
Ela: Mas acho perigoso pra minha irmã ter uma coisa dessas em casa com uma criança pequena andando pra lá e pra cá.
Ele: Ué, mas porque você acha isso, amor? Você acha que pode ocorrer um acidente fatal?
Ela: Fatal também, mas... sei lá... vai que a criança ache que aquilo é bebedouro e beba aquela água nojenta.
Ele: Ela não vai achar isso, sabe por quê?
Ela: Por quê?
Ele: Porque seu sobrinho ainda não tem idade pra ficar bêbado num reveillon em saquarema.
Ela: Ai, eu tava cuma sede.
Ele: Vamo dormir, vai.

2.2.07

De volta para o presente

Eles chegam de viagem. Ela carregada de sacolas. Ele empurrando malas com rodinhas.

Ele: Praticidade... ainda bem que só tem roupa suja e souvenir barato nessa mala.
Ela: Por que ainda bem?
Ele: Porque a bosta da rodinha emperrou e eu tive que chutar as malas do elevador até aqui.
Ela: Ah...
Ele (larga as malas num canto): Enfim.. lar, doce...
Ela: Ai, nem me fala em doce...
Ele: Tá ruim, é?
Ela: Nossa... esse povo de Minas sabe mesmo pagar o pecado da gula, viu? Nunca vi tanto doce de leite, cajuzinho e pé-de-moleque na minha vida.
Ele (tirando os sapatos): Cê viu o tamanho daquela goiabada cascão na cozinha da minha tia?
Ela (deita na cama): Cê viu aquilo César?
Ele: Se não vi... fiquei com medo. Parecia aquele filme do Stephen King, "A coisa".
Ela: Muito grande. Acho que dava pra alimentar aquela cidade inteira.
Ele: Se juntasse com aquele tacho de doce-de-leite então...
Ela: Nossa, nem posso imaginar que já fico enjoada... e olha que nem tô grávida ainda.
Ele: Por falar em grávida porque você falou pra minha mãe que a gente está querendo ter um filho.
Ela: Ué, César. Falei. Por quê? Tem algum problema?
Ele: Não. Só achei estranho você chegar e falar assim... não sabia que a gente podia fazer isso.
Ela: Não. Mas a gente não pode.
Ele: Ué, então por que você falou?
Ela: Ai, César... você sabe como é sua mãe. Ela foi falando, falando... aí quem falou fui eu.
Ele: O que ela falou? E o que você falou?
Ela: Ah, muita coisa.
Ele: Muita coisa o quê, Luiza?
Ela: Ai, César. Ela me cumprimentou, perguntou como é que eu tava, eu disse que tava tudo bem, agradeci, porque não parece, mas eu sou uma pessoa educada. E depois ela virou e me perguntou "quando é que vocês dois vão ter filhos".
Ele (irônico): Caramba, quanta coisa, hein, ô.
Ela: Eu não te disse.
Ele: E aí você contou?
Ela: Não. Eu me segurei. Eu só contei quando ela falou que o meu cabelo tava frisado.
Ele (se irrita): Frisado o cú dela! Eu tinha feito escova em você quase toda semana.
Ela: Pois é.
Ele: Velha sem noção.
Ela: Calma, César. É sua mãe.
Ele: E além dela... você contou pra mais alguém?
Ela (desconversa): Você tá sentindo esse cheiro?
Ele: Que cheiro?
Ela (se levanta): Esse cheiro podre. Acho que vem da cozinha.
Ele: Eu não tô sentindo cheiro de nada... vem cá...
Ela (sai e depois volta): César, tá um cheiro horrível na cozinha. Acho que não vai dar pra gente ficar aqui hoje, não.
Ele: O cheiro é na cozinha. A gente quase não sai do quarto... vem cá, agora, que eu quero que você me responda o que eu te pergun...
Ela: Cacete!
Ele: Que foi agora?
Ela: Tem um ninho de rato debaixo do abajur!
Ele: Luiza, raciocina, mulher. "Ninho" de Rato???
Ela: Eu quero dizer no sentido figurado, ô bobão. Um monte de rato. Tudo filhotinho... Ai, que nojo... eu vou me embora daqui...
Ele (exaltado): Espera aí. Você não vai a lugar nenhum. Você tá fugindo de sua irresponsabilidade. Pra quem mais você contou sobre nós termos um filho?
Ela: Ai, César... pra minha mãe.
Ele: Sua mãe?
Ela: E meu pai. Na véspera de Natal.
Ele: Pro seu pai?... você contou para o seu pai? Mas... você ficou louca, mulher?
Ela: Por quê?
Ele: Me diz exatamente o que você disse a ele.
Ela: Que queríamos engravidar.
Ele: Eu quero as exatas palavras, Luiza.
Ela (encucada): Nossa, esse cheiro...
Ele: Luiiiiiza!
Ela: Ai, meu Deus. Eu sentei com ele na mesa de jantar pouco depois da meia-noite e disse que eu... e você... estávamos tentando ter um filho.
Ele: Tentando? Você falou que estávamos "tentando"?
Ela: Porra, qual o problema agora, hein?
Ele: Não se diz isso pra um pai, Luiza. Não se fala pra um pai que um garotão tá comendo a filha dele.
Ela (ri): Garotão?
Ele (aparentemente calmo): Não se dá uma notícia assim, meu bem.
Ela: Tá bom, César. E como as filhas fazem quando estão grávidas? Com elas contam para os pais?
Ele: Aí, é que tá o grande "X" da questão...
Ela (abaixa a cabeça): Meu Deus, tinha que ter um grande "X" da questão.
Ele: ... quando elas vão contar, elas já ESTÃO grávidas. Não estão "tentando". Entende agora?
Ela: ...
Ele: Entendeu?
Ela (puta): Entendi.
Ele (indo pro banheiro): ...
Ela: O que você vai fazer?
Ele: Vou tomar banho. Tô bravo com você.
Ela: Peraí. Você não vai matar o rato?
Ele: Não. Vai ter que dormir com esse "ninho" aí.
Ele fecha a porta do banheiro, dois minutos depois abre, com a cara mais enfezada ainda.
Ela: Que foi?
Ele: O chuveiro... queimou a resistência.
Ela: Hun...
Ele: Pega as malas e coloca de volta no carro.
Ela: Aonde que a gente vai?
Ele: Vamo voltar pra Muriaé.
Ela: Mas, peraí, César. E o rato?
Ele (saindo, novamente empurrando a mala com rodinhas): Traz ele também, faz o favor...
Ele sai, e ela o segue tampando o nariz devido ao odor nojento da cozinha.