31.8.06

Os Picaretas

Domingo de sol. Dia de praia, descontração, futebol, almoço em família. Aquelas coisas.
Nada é tanto assim.

Ele: Ah, Luiza. Esse, não.
Ela: Amor, é romântico.
Ele: Pô, muito parado. Coloca um de ação aí. Uma coisa mais pra cima.
Ela (sentando no colo dele): Ai, César. Esse filme é ótimo. Olha aqui, é um drama psicológico.
Ele: Drama? Peraí, não era romance?
Ela (ri): César, é bom. A crítica adorou.
Ele: Ih, a crítica gostou... vou acabar dormindo.
Ela: Amor?
Ele: Ah, Luiza, coisa mais down esses lances psicológicos...
Ela (séria): César, você precisa reeducar suas escolhas.
Ele: Reeducar minhas escolhas?
Ela: É. Ficar se prendendo a filmes do Eddie Murphy e do Steve Martin, acaba bloqueando a capacitação intelectual da pessoa.
Ele: Pô, mas eu adoro o Steve Martin.
Ela: Eu sei. Eu também gosto. Mas a questão não é gostar do Steve Martin. Mas sim o fato de assistir algo além do Steve Martin.
Ele: O Eddie Murphy.
Ela: Além do Eddie Murphy.
Ele: O Maz...
Ela (completa): E do Mazzaroppi.
Ele: ...
Ela: Você precisa ampliar seus horizontes.
Ele: Ampliar, é?
Ela: É. Dar mais credibilidade a outras produções mais artísticas.
Ele: Ah, Luiza, você sabe que eu acho essas coisas de arte um saco.
Ela: Mas devia dar uma chance. Assistir documentários, curtir a arte independente.
Ele: Arte independente, então... pra mim isso é coisa de maconheiro e viado.
Ela: Tenta, amorzinho.
Ele (com cara de quem está passando mal): Peraí.
Ela: Que foi?
Ele (tenta ser sútil): Sei lá... sabe quando você sente aquele desconforto que você fala?
Ela: Que desconforto?
Ele: Aquela sensação desagradável, sabe?
Ela: Não. Que sensação?
Ele (desiste): Aquela vontade de peidar, Luiza.
Ela: Ah... sei. Quer que eu te faça um chá?
Ele: Quero sim.
Ela (se levantando pra ir a cozinha): Eu volto já.
Ele: Melhor, me traz uma cerveja.
Ela (ri): Tá bom, mas não começa o filme sem mim, hein?
Ele (pega o telefone e liga para um amigo): Alô? John? Tá bom? Tô bem. Escuta, rapaz, você já assistiu esse filme aqui... é.... "Lembranças de uma noite fria"... é cult... independente e é sueco também. Sei.... sei... e qual o final?... hã... sei... sei... Tá. E o velho morre?... hã?... Tá. Valeu, garoto. Não, por nada. Só curiosidade. Tá. Ahã.
Ela (chega com a cerveja): Ué, quem era no telefone?
Ele: Engano.
Ela: Ah, tá... E aí, decidiu ver o filme?
Ele: Oh, amor. Sabe o que é? Eu... eu já vi esse filme.
Ela (irônica): Já viu, é?
Ele: Vi sim. Sério. Tá duvidando. A história se passa em 1957...
Ela: O filme é de 1957.
Ele: Por isso. Então.... Tem um velho, né... que.... é professor de medicina, e ele vai receber um prêmio na universidade pelos 50 anos de trabalho. Na viagem, ele começa a ter umas sacações, sabe... ele... recorda o passado e começa a viver uma crise existencial, sabe? Coisa bem artística... independente mesmo.
Ela: Ah, sei.
Ele: Eu só não vou contar tudo, porque... vai perder a graça, afinal você vai ter que assistir depois, né.
Ela: É...
Ele: Então... vamos ver o outro. O do Steve Martin.
Ela (sorrindo): Vambora.
Ele (acha o sorriso dela estranho): Então tá.
Ela: ...
Ele (prepara a sessão): Muito bom, esse filme. Você acredita que tem o Steve Martin e o Eddie Murphy juntos? Acredita nisso?
Ela (ainda com o sorrisinho irônico): ...
Ele (senta na cama, e abraça ela): Os dois no mesmo filme. Cara, isso é muito bom.
Ela: Muito bom mesmo.
Ele: Como?
Ela: Esse filme. O Steve Martin faz um um diretor de cinema que quer fazer um filme com um astro de cinema e não tem dinheiro... então ele monta um plano.
Ele: Plano, ah... sei. Alá, vai começar.
Ela: E ele faz o filme... hahahaha sem que o ator, que é o Eddie Murphy, claro, saiba. Ele contrata uma equipe toda e um dublê que no final é o irmão do Eddie Murphy... que é o Eddie Murphy mesmo. Mas no final, acaba que o filme é um sucesso e ele consegue tudo o que queria.
Ele (puto): ...
Ela: ...
Ele (olha pra ela com desprezo): Você.
Ela (sorrindo, mostra o celular pra ele): Eu também tenho os meus contatos, querido.

25.8.06

Não é TPM, é VOCÊ!

Ele chega em casa, tarde da noite, todo suado. Ela acorda com ele entrando no quarto, na ponta dos pés.

Ele: ...
Ela: Recordou-se do caminho de volta pra casa?
Ele: Vixe... "recordou-se"??... me fudi!
Ela (acende a lâmpada do abajur): ...
Ele: Eu não queria te acordar.
Ela: E tú achas que eu consegui dormir com você fora de casa até essa hora?
Ele (acende a luz do quarto): Ah, Luizaaaaaaa...
Ela: "Ah, Luiza", não! Onde é que você esteve, César? Você tem noção de que horas são? Sai assim... sem dar uma explicação pra mim... Olha aqui, celular desligado, fora de área. Liguei pra sua mãe, pro seu primo, até pra sua irmã, meu querido... e nada... nenhum sinal.
Ele: Olha o exage....
Ela (interrompe): César, você reconhece as suas obrigações de marido comigo? Tem noção de como eu me sinto, sem saber onde você anda essa hora da noite, numa cidade perigosa como essa?...
Ele: Amor, eu...
Ela (interrompe): Você por acaso sabe o que está se passando nessa casa, César? Sem dar uma satisfação....
Ele: ...
Ela: Hã?
Ele: Posso falar?
Ela: Agora!
Ele: Eu tava no treino.
Ela: Treino?! Que treino?
Ele: Ué, o futebol dos casados contra os solteiros. Pelada da firma.
Ela: Ah, conta outra, César.
Ele (ri): Ué... é sério, Luiza.
Ela: Desde quando?
Ele: Ué, toda quarta. Peladinha da firma.
Ela: Conheço bem essa "peladinha da firma". A Dona Sueli, secretária do Irineu.
Ele (rindo): Luiza... pára com isso, meu amor.
Ela: César, não toca em mim.
Ele: Amor, eu precisava ir nesse jogo.
Ela: Por que "precisava"?
Ele (tirando os sapatos): Ué, pra me incluir dentro do círculo da sociedade de amigos e trabalhadores da firma.
Ela: Sei sim.
Ele: Luiza, vai dizer que isso não melhora a imagem da gente? Vai dizer que você gosta de ir naqueles jantares "chatos-pra-dedéu" que a alta comissão do seu escritório te convida?
Ela: Eu sabia que você ia falar do jantar do meu chefe.
Ele (tirando a camiseta): Ué, isso já não é novidade.
Ela: Você foi inoportuno.
Ele: Não fui, não. A mulher do seu chefe que tava dando em cima de mim.
Ela (levanta a voz): Porque você é ignorante.
Ele: A mulher vem me oferecendo a "brusqueta" pra mim na boa... o que você quer que eu entenda?
Ela (furiosa): Era brusqueta a napolitana, César.
Ele: Eu percebi... mas só depois de ela ter me enfiado a mão na cara.
Ela: Ai. Difícil, viu...
Ele: ...e doído.
Ela: César, você tá fedendo. Vai tomar banho.
Ele (entrando no banheiro): Mas ainda afirmo que a culpa não foi minha.
Ela: Por isso a gente precisa ir a tantos eventos assim. Pra fazer os outros esquecerem desse vexame passado.
Ele: Eventos?... Chato-pra-dedéu.
Ela: Por que você não me diz logo que não gosta desses meus encontros profissionais?
Ele: Há anos que eu te digo isso.
Ela: Então por que vai?
Ele: Porque você faz questão de me levar pra essas festas chatas.
Ela: Chatas, é?
Ele (pegando uma toalha no armário): Pra-dedéu.
Ela: Da próxima vez, eu vou jogar pelada com os meus amigos do escritório, tá bom assim? Bem mais divertido, não acha?
Ele: Peraí, você vai jogar pelada, ou vai jogar "pelada"?
Ela: Amorzinho, realmente não é a hora pra trocadilho cesariano, tá?
Ele: Luiza, você ficou acordada até essa hora só pra me aporrinhar?
Ela: ...
Ele: ...
Ela: Quer saber, César? Eu vou fazer uma coisa que vai de encontro às regras desse blog maldito.
Ele (rindo): O quê?
Ela: Vou dormir no sofá.
Ele (a impede): De jeito nenhum.
Ela: O q...
Ele: Eu não permitirei.
Ela: Como ass...?
Ele: Eu não vou deixar que uma simples TPM e umas horas de atraso em um lazer, digno de quem é trabalhador, destrua uma relação estável na cama.
Ela: TPM? Relação estável?
Ele: É.
Ela (ri): ...
Ele: Que foi?
Ela (irônica): Oh, meu amor.... Sabe quando você vai provar da brusqueta de novo?
Ele: Olha, Luiza. Eu acho que isso não é hora para trocadilhos luizianos, tá?
Ela (desiste e volta pra cama): Vá tomar banho, César. Você tá fedendo
.

19.8.06

Saturday Night Fever

Sábado à Noite. Ele sai do banho, se arrumando, todo perfumado. Ela, com pipoca no colo, pronto para ver um filme.

Ela: César.
Ele: Oi, amorzinho.
Ela: Tá indo aonde?
Ele: Eu?
Ela: É, você.
Ele: É que... oooo.... por causa daaaa.... eu vou. Na verdade...
Ela: Ah, meu amor, se for pra mentir, pensa rápido, pelo menos. Isso conta pontos com mulher otária.
Ele: Que mentira? Eu por acaso sou homem de mentir?
Ela: Ué, tá parecendo um papagaio gago com soluço, aí.
Ele: ...
Ela (grita): Então?
Ele: Fala baixo.
Ela: Ih, aí tem coisa, César. Não vai me contar aonde vai?
Ele: Você não vai gostar.
Ela (grita novamente): Aonde você vai, César Mariano?
Ele (fica vermelho de raiva): ...
Ela (além de vermelha, quase babando): ...
Ele: Você sabe que eu fico puto da vida quando me chamam assim.
Ela: E você sabe que eu só te chamo assim quando EU tô puta da vida.
Ele: ...
Ela: ...
Ele: Eu vou numa despedida de solteiro.
Ela: De quem?
Ele: Do Maurão.
Ela: Mas o Maurão não casou na semana passada?
Ele: Pois é. Só que ele casou sem despedida...
Ela: E aí vocês vão levá-lo para a gandaia como um consolo, já que ele afundou a vida dele no matrimônio?
Ele: "Afundou no matrimônio"!! Você fala como se o casamento fosse uma punição.
Ela: Tá quase, amorzinho. Tá quase lá.
Ele: ...
Ela: ...
Ele: Então?
Ela: Quê?
Ele: Posso ir na despedida de solteiro?
Ela: Pode... ir... pro inferno.
Ele (animado): Mesmo?
Ela: Sem volta.
Ele (beija a esposa): Você sabe que eu volto.
Ela: Fazer o quê? Tá no contrato, assinado, com testemunha. Dizem que é pra vida toda.
Ele: Pára com isso, Luiza.
Ela: César, você não tava saindo?
Ele: E você vai fazer o que, hoje?
Ela: Sei lá. Eu vou assistir um filme, ou vou ler um pouco, ou vou ligar pra Selma e convidá-la pra sair.
Ele: Sair com a Selma?
Ela: É. tava pensando em ir numa boate, daquelas de beira de estrada, sabe?
Ele: Lotada de prostitutas de segunda mão?
Ela (rindo): E caminhoneiros suados, peludos e entupidos de esperma!
Ele: Parece legal. Posso ir junto?

12.8.06

Romântico

Ela entra no quarto e não encontra metade dos móveis. A cama, metade limpa, metade cinzas.

Ela: César!
Ele (sai do banheiro): Lu-i-za!
Ela: O que... como... o que aconteceu aqui?
Ele: Um pequeno incêndio.
Ela: Pequeno?
Ele: Aparentemente.
Ela: Como?
Ele: Os bombeiros ainda acham...
Ela (interrompe): Bombeiros?
Ele: Na verdade, um bombeiro. Na verdade, foi o Jeremias, irmão do porteiro, que acha...
Ela: Ele é bombeiro?
Ele: Mais ou menos. Ele tem diploma de torneiro-mecânico e especialidade em primeiro-socorros... ele me explicou mas eu não entendi direito...
Ela (interrompe de novo): César, o que houve aqui?
Ele: Parece que tudo começou pela cortina.
Ela: A cortina pegou fogo?
Ele: Foi.
Ela: Como?
Ele: Aí é que tá. Eu tava preparando uam surpresa pra você.
Ela: Que surpresa? Um arraiá na minha cama?
Ele: Não, bobinha.
Ela: Então o que era?
Ele (envergonhado): Um luau.
Ela: Dentro do quarto?
Ele: Na verdade, era mais um jantar a luz de velas.
Ela: Eu repito a pergunta, César. "Dentro do quarto?"
Ele: Ué, Luiza. A gente não faz nada fora desse quarto mesmo. Tudo o que a gente faz é aqui. A gente conversa, come, bebe, assiste TV, lê, fala ao telefone, transa, come depois transa, enfim... qual o problema?
Ela: Pois é. Olha só, agora. Eu sabia que um dia isso não ia dar certo.
Ele: O quê?
Ela: Nós, dois, nesse quarto. O tempo inteiro. Nessa cama.
Ele: Tá dizendo que tá cansada disso?
Ela: Não, eu to dizendo que a gente precisa mudar, César.
Ele: Bom, a gente vai ter que mudar de cama mesmo, porque essa aqui, só sobrou a metade.
Ela: Não, César. A gente precisa mudar de ambiente.
Ele: Como assim?
Ela: Sair um pouco desse quarto. Passar mais tempo na sala, na cozinha.
Ele: Eu não sei se eu tô preparado pra Cozinha.
Ela: É preciso.
Ele: Por que é preciso?
Ela: Porque sim.
Ele: Por quê?
Ela: ...
Ele: ...
Ela: Porque o nosso relacionamento está caindo na rotina.
Ele (ri): Relacionamento caindo na rotina... pois bem... eu desviei da rotina hoje... coloquei fogo no quarto todo.
Ela: Eu tô falando sério, César.
Ele: ...
Ela: ...
Ele: Luiza, eu entendo sua preocupação.
Ela: Obrigada, meu bem.
Ele: Mas você acha mesmo que nós dois e uma cama, todos os dias juntos, quer dizer que o nosso casamento está rotineiro?
Ela: Acho.
Ele (abraça ela): Oh, meu amor.
Ela (sorri nos braços dele): ...
Ele (rindo e falando mansinho): Você tá ficando maluca, sabia?

7.8.06

Troca de Papéis

Ele chega em casa, esbravejando. Ela lendo.

Ele: Filho du-ma pu-ta!
Ela: ...
Ele: Caralho, que merda.
Ela (olha pra ele e volta a ler): ...
Ele: Vá tomá nu...
Ela (interrompe): Que foi, hein, César?
Ele: Essa cidade. Esse trânsito. Eu já não agüento mais!
Ela: Ah, é só isso?
Ele (pasmo e mortificado): Sóó??!!
Ela (olha pra ele e volta a ler): ...
Ele: Cidade desgraçada!
Ela: Un-hu...
Ele (gritando): É por isso que, um dia, eu ainda vou fugir dessa merda toda. Vou pra bem longe... lá pro cú do mundo, onde não tenha nenhum filho da puta, buzinando na minha idéia!
Ela (lendo): ...
Ele: Oooh, vidinha mais ou menos, viu!!