26.11.06

Um na Cama

Caixas de pizza em cima da cama desarrumada. Ele esticado na cama, olhando pro teto. O som alto abafou a chegada do amigo, que desliga o rádio fitando a situação de César.

Outro: Opa!
Ele: Ah... graças a Deus que você chegou!
Outro: Pois é.
Ele (jogando as caixas pro canto): Tá meio bagunçado... a... deixa eu ver se...
Outro: Então... por que o telefonema urgente?
Ele: Nada demais, queria conversar contigo.
Outro: Cadê sua esposa?
Ele: Viajou.
Outro: Tá virando viado, seu César?
Ele: Porra, Ataíde. Claro que não. Tá me estranhando?
Outro: Então
por que me chamou? Qual a urgência?
Ele: Nenhuma. Meu deus, será que eu não posso querer atualizar as conversas com um amigo. Faz tempo que a gente não bate um papo, toma uma cervejinha, não faz não?
Outro: Seu César. Eu sou apenas o porteiro do prédio. E que eu me lembre, a gente nunca tomou cerveja juntos.
Ele: Tá mais do que na hora da gente mudar isso.
Outro: É?
Ele: É. Sentaí.
Outro (senta do lado de César): ...
Ele: E aí, vamos falar do quê? De mulé... futebol? Qual seu time do coração?
Outro: Eu sou Bahia desde criança.
Ele: Bahia.... Mto bom... o Bahia... é... tá numa fase difícil, né.... mas, é.... é um time bom. Tem sua... né....
Outro (apenas concorda): ...
Ele (sem graça, acende um cigarro): Ih, vem cá... você fuma?
Outro: Não, senhor.
Ele: Sem essa de senhor, Ataíde. Afinal, a gente tá aqui... né... nós dois... ó... amigos do peito. Sem formalidades, não é?
Outro: É... é sim.
Ele: Então... quer um cigarro?
Outro: Não. Eu não posso.
Ele: Ah, não. Por quê?
Outro: É... Problemas de doença causada pelo cigarro na minha família. Minha irmã morreu por causa de cancêr no pulmão e meu afilhado agora, só tem vinte e dois anos, tá com um buraco na traquéia desse taman...
Ele (interrompe, jogando o cigarro fora): É... o cigarro é uma mal danado, né... fumar realmente é uma atitude escrota.
Outro: Muito escrota.
Ele: Muito. Muito escrota.... e... aqui, vamo tomá uma cervejinha?
Outro: Muito obrigado, senhor. Eu não bebo.
Ele: Ah, não bebe também?
Outro: Não. Problemas de doença...
Ele: ... na família, né. Compreendo.
Outro: ...
Ele: Eeee... a sua esposa como está?
Outro: Não sei. Ela me deixou no mês passado. Levou os meninos e o Gusmão.
Ele: Gusmão?
Outro: É, meu cachorrinho.
Ele: Ah, o ca-cho-rriiiiinho.
Outro: Pois é. Disse que não dava mais, que queria o divórcio, se mudar.... mas como o divórcio tá caro, a gente só se separou mesmo.
Ele: Que coisa, hein, Ataíde...
Outro: É...
Ele: ...
Outro: ...
Ele (eufórico): Quer pizza? Tem pizza lá no forno. Cara, acabei de lembrar. Tem uma picanha no refrigerador. A gente desce lá no play, e faz um churrasco, o que você acha?
Outro: Não, obrigado. Eu não como carne.
Ele (meio puto, resmungando): Também não come carne?... Entendi.
Outro: ...
Ele: ...
Outro (olhando pro teto): ...
Ele (toma um gole de cerveja): ...
O telefone toca.
Ele (atende na velocidade da luz): Aloô?
Outro: Seu César... eu vou...
Ele (desesperado): Não, não tô ocupado, não. Tô tranquilo.
Outro: ... vou lá na portaria.
Ele: Espera um pouquinho. Não desliga não... (volta ao amigo) Valeu, Ataíde. Bom serviço, hein.
Outro (sai, quieto): ...
Ele: Não. Eu tô muito interessado em saber dos seus planos de parcelamento. Trabalho com VISA sim. Claaaaaro.

14.11.06

O Bebê de Rosemeire

Ela chega em casa, cansada. Ele na cama, organizando as contas da casa.

Ele: Olá, minha esposa.
Ela: Oi, meu marido.
Ele (na calculadora): ...
Ela (desanimada): ...
Ele: Como é que foi o curso?
Ela: Ah, nem te conto como foi esse curso.
Ele: Ué, não gostou?
Ela: Não, eu adorei.
Ele: Então...
Ela: Ai, César. Sabe aquela situação em que você deseja perder um dedo pra não estar presenciando?
Ele: Ihh, cacete... o que aconteceu?
Ela: O professor era zarolho!
Ele: Zarolho? Como assim? Vesgo, você quer dizer?
Ela: Não, zarolho mesmo, o que é bem pior do que vesgo. Daí você já pode adivinhar o que aconteceu, né.
Ele: Putz, que merda. Professor estrábico, cachorra no cio e sogra em praia de nudismo são três coisas que deviam ser abolidas do senso comum terrestre.
Ela: Terrestre?
Ele: É... não me atrevo a me envolver com dogmas e me expressar por planos celestiais, não é?
Ela (confusa): Planos celestiais?
Ele: Ou demoníacos. Eu só afirmo isso perante ao espectro da raça humana, que é o que eu conheço. Deus me livre de me debater com uma sogra nua morta ou uma cachorra tarada vinda dos céus.
Ela (percebe toda a ladainha): Em outras palavras...
Ele: ... professor estrábico é uma merda.
Ela: ...
Ele: ... e junto com a cachorra no cio e a sogra na praia naturalista...
Ela: ... são precursores das maiores vergonhas do mundo.
Ele: É, pode-se dizer que sim.
Ela (entra na dele): Não, é sério. É fato. Comprovado pelo Índice de Embaraço e Constrangimento computado através de pesquisas realizadas pela ONU.
Ele (vendo a conta do cartão de crédito): É mesmo?
Ela: Como é que ia saber, César? Você vem me falando de cachorra, sogra pelada e planos celestiais só porque eu falei do meu professor vesgo.
Ele: Estrábico.
Ela: Não. Zarolho, que é pior.
Ele: Você parcelou a compra do abajur?
Ela (muda o tom): Foi sim.
Ele: E vem cá, o que mesmo aconteceu na aula com o zarolho?
Ela: Pô, um professor zarolho, o que poderia ter acontecido?
Ele: Ué, milhares de coisas... e esse valor aqui? $67,80?
Ela: O óculos do seu pai.... pô, César, mas qual a coisa mais óbvia?
Ele: Que coisa mais óbvia? Eu sei lá. Pode ter acontecido um monte de coisas.
Ela: Eu falei pra você adivinhar.
Ele: Ah, Luiza, tô muito ocupado pra adivinhar.
Ela: Ah, esquece essa conversa. Foi uma merda mesmo.
Ele: ...
Ela: ...
Ele: Aqui. $105,40?
Ela: O mocassim da mamãe.
Ele: Sua mãe usa mocassim?
Ela: É, usa. Também tá no TOP das maiores vergonhas mundiais.
Ele: Ué, achei que queria terminar esse assunto.
Ela: O assunto do professor tá terminado. O das vergonhas não.
Ele: Por falar em vergonha e mocassim, sua mãe ligou.
Ela: Ai, que saco. O que ela queria?
Ele: Nada. Ficou falando um monte de coisas que eu não entendia depois disse pra te dizer que ela ligou.
Ela: E as coisas lá em casa? O papai tá melhor da coluna? A minha irmã tá bem?
Ele: Tá. O bebê está ótimo, apesar de tudo.
Ela: Que bebê?
Ele: Sua irmã tá grávida de quatro meses, Luiza.
Ela: Sério?
Ele: Você realmente escuta a sua mãe?
Ela: Quase nunca. Ela vive falando umas coisas que eu não entendo.
Ele: ...
Ela: Por que você disse "ótimo, apesar de tudo"?
Ele: Como?
Ela: Você falou "o bebê está ótimo", deu uma paradinha e depois disse "apesar de tudo".
Ele: Ah, sim. É que a sua irmã entrou no estado Alfa ao Ducentésimo Cosmo Universal.
Ela: Isso tem a ver com aquele seu assunto de planos celestiais?
Ele: Não.
Ela: O que isso quer dizer, então?
Ele: Quer dizer que a última depressão dela superou as outras cinco. Ela agora acha que carrega o fruto de uma entidade celestial em seu ventre.
Ela: No meu ventre?
Ele: Não, Luiza. No ventre dela.
Ela: Como assim? "Tipo" ela tá grávida de Deus?
Ele (ri): "Tipo" que eu também não entendo as loucuras da sua irmã.
Ela: E o que tem a saúde do bebê tem a ver com isso?
Ele: É que... ela tentou um aborto natural.
Ela: "Tentou" um aborto natural???
Ele: De novo! Eu não entendo as loucu...
Ela: Tá. E o bebê?
Ele: Tá bem. Mas o médico disse que se tal fato voltar a acontecer, me parece que a criança pode sofrer algum dano físico.
Ela: É mesmo, é?
Ele: Foi o que eu entendi.
Ela: Ai, César. Será que ele vai nascer com estrabismo?
Ele: Por se tratar de ser uma cria da sua irmã, uma criança com estrabismo seria a menor das minhas preocupações.
Ela: Ai, César. Eu vou ter quer que ir até lá.
Ele: Tá bom. Você quer ir mesmo?
Ela: Un-hu.
Ele: Então no fim-de-semana, a gente ...
Ela: Não, eu quero ir agora.
Ele: Luiza, são onze e meia da noite.
Ela: César, eu preciso salvar meu sobrinho.
Ele: De quem? Da mãe dele?
Ela: Exato.
Ele: Luiza, você vai quereu dirigir até São Paulo, a essa hora da noite?
Ela: Vou de ônibus.
Ele: Porra, Luiza.
Ela: Porra, César. Meu sobrinho vai nascer zarolho, caralho!

8.11.06

A Noite é nossa...

Ela no telefone com a amiga.

Ela: ... falou como se eu nem tivesse lá. Esse povinho que trabalha com cinema é foda... Cinema? Que horas? Às oito?... Ah, Selma, hoje acho que não vai dar... Ah, não sei, eu tô ficando muito pouco junto com o César. O César!... Meu mariiido!... Então, ele tá trabalhando muito, eu também, a gente mal tem tempo de se ver e hoje coincidiu de nós temos a noite livre... Não sei, tô pensando em alguma coisa romântica... só nós dois, velas, vinho, sei lá...
Ele (entra de repente, gargalhando): Luiza...
Ela: Fica pra depo... (olha pro marido) Oi, meu bem.
Ele: Olha só a "bitucona" que eu tirei do nariz, é igualzinho ao Mickey Mouse de perfil... olha!
Ela: ...
Ele (ligadão): Não parece?
Ela (volta ao telefone): Selma, te encontro às sete e meia na bilheteria, tá bom?